Nunca tive dinheiro
de sobra, isso é certo, mas, essa onda de azar está me tirando o sono de
verdade, enquanto a ministra da fazenda esfrega em nossas caras o seu romance
com o ministro da justiça, eu e milhares de brasileiros nos afundamos em dívidas,
melhor trabalhar.
O nome da obtusa era
Maria Clara Carvalhais, a residência no bairro do Itaim era num sobrado, o
único do quarteirão, aos lados, na frente e atrás, oponentes prédios residenciais
se apresentavam.
Bem uma paisagem
inusitada, um solitário e bem conservado em meio à um mar de prédios, não pude
resistir, do lado oposto da rua, encostei as costas no muro e bati um retrato,
pensei em rebatizar o caso com o nome de “Sobrado”, no entanto, minha intuição
disse que o Piano branco soava muito melhor.
Além da parada para
a fotografia, fiz mais duas voltas na rua a pé, deixei a Kombi estacionada a
dois quarteirões dali, para não despertar suspeitas, continuei andando e
raciocinando, o vizinho à direita estava em reformas, operários trocavam o piso
da portaria, forçando o porteiro a atender numa cadeira, do lado de fora, em
frente ao portão.
Bem provável que o
titular da portaria estivesse muito incomodado com a situação e, nesse caso, a
atenção tende a ficar mais falha, dobrei o quarteirão em passos tranquilos,
entrei na Kombi, dessas de serviço que tem as janelas lacradas e sem bancos
traseiros, fucei entre as roupas e achei um macacão azul surrado, um par de
botas e um boné combinando, composto o personagem, colei um bigode falso e
apanhei uma prancheta com um papel de ofício preso nela.
Quando fiquei fácil
para a visualização do porteiro, andei em direção do portão com os olhos fixos
na prancheta, como quem não havia percebido a presença dele, eu tinha um olhar
de quem tinha que executar uma tarefa muito chata, parei e ele se mostrou
solícito:
_Amigo, esse é o 780??
_. É sim, posso
ajudar??
_O técnico dos
elevadores esteve aqui por esse mês, suponho.
_. Não, já tem mais
de seis meses da última visita.
Levei as mãos à
cabeça, aparentando que se tratava de uma tragédia, ele respirou fundo:
_. Algum problema,
moço??
_. Alguma reclamação
acerca de alguns dos elevadores???
_. Sim, o tempo
todo.
E, funciona assim,
para condôminos, elevadores são motivos de insatisfação, insatisfações são
jogadas sempre na portaria, porteiros odeiam reclamações, só o fluxo natural
das coisas, naturalmente o porteiro não se opôs ao fato de um técnico executar
uma vistoria fora de data, isso me deu a tranquilidade de, da janela vidrada do
corredor do segundo andar, observar o terreno vizinho, diga-se de passagem, uma
bela visão de um belo imóvel, no fundo do terreno se estendia uma grande
piscina, onde uma camada verde de limo se apresentava no azulejo do fundo.
Voltei ao automóvel,
livrei-me do disfarce e procurei numa caixa de arquivos a minha salvação, uma
pilha de panfletos diversos, um deles deveria me ajudar.
Ao cabo de alguns
segundo o achei, dizia o anuncio:
LIMPADOR DE
PISCINAS, telefone tal.
Juntei uns cinco
desses anúncios, voltei à frente do sobrado e joguei-os por cima do muro, o
telefone correspondente no anuncio era o da Tereza, agora era esperar.
Nossa agencia não
fora montada com o dinheiro arrecadado na venda das armas do Souza, tudo o que
conseguimos com isso mal pagou uns aluguéis e a manutenção do carro.
O Hafic sentiu, nem
me pergunte como, que seus dias nessa terra estavam contados e, tinha medo que,
com a sua morte, a agencia fosse desmontada.
O turco tinha dois
filhos bem-educados e formados, esnobes mesmo, mal falava com eles e sabia que
os mesmos não aprovavam as aventuras do pai, sempre metido no submundo, a ideia
de aventura de investigações era-lhes repugnante, o tipo de pessoas que, ao
entrar em suas casas acarpetadas, deixam os calçados para os criados limparem a
sola.
Para o velho, eu e a
Tereza éramos os filhos adotados, nos chamava de filhos, quando da sua morte,
recebemos duas notícias, uma dava conta da dissolução da firma, o advogado que
cuidava da divisão da herança do turco nos chamou à parte e nos deu um envelope
grande, escrito à caneta, no garrancho habitual do Hafic:
Para os meus
queridos filhos...PS, nunca assinem papeis em branco.
Por ser esse, o
bordão mais famoso do velho, rimos um pouco de saudades, com cuidado abrimos o
envelope, papeis com nossas assinaturas e com carimbos de cartórios, dois
terrenos na periferia e oito linhas telefônicas e ações dessas linhas, tudo
quitado.
Algumas dessas linhas
telefônicas eram avaliadas no valor de um bom apartamento no centro de São
Paulo, não dividimos nada, viramos sócios.
Ultimamente o plano
Collor jogou tudo no chão, nossas ações foram desvalorizadas, nosso dinheiro
foi confiscado e, como isso aflige o país todo, os clientes sumiram.