sexta-feira, 15 de setembro de 2017

A herança



  
  Nunca tive dinheiro de sobra, isso é certo, mas, essa onda de azar está me tirando o sono de verdade, enquanto a ministra da fazenda esfrega em nossas caras o seu romance com o ministro da justiça, eu e milhares de brasileiros nos afundamos em dívidas, melhor trabalhar.
  O nome da obtusa era Maria Clara Carvalhais, a residência no bairro do Itaim era num sobrado, o único do quarteirão, aos lados, na frente e atrás, oponentes prédios residenciais se apresentavam.
  Bem uma paisagem inusitada, um solitário e bem conservado em meio à um mar de prédios, não pude resistir, do lado oposto da rua, encostei as costas no muro e bati um retrato, pensei em rebatizar o caso com o nome de “Sobrado”, no entanto, minha intuição disse que o Piano branco soava muito melhor.
  Além da parada para a fotografia, fiz mais duas voltas na rua a pé, deixei a Kombi estacionada a dois quarteirões dali, para não despertar suspeitas, continuei andando e raciocinando, o vizinho à direita estava em reformas, operários trocavam o piso da portaria, forçando o porteiro a atender numa cadeira, do lado de fora, em frente ao portão.
  Bem provável que o titular da portaria estivesse muito incomodado com a situação e, nesse caso, a atenção tende a ficar mais falha, dobrei o quarteirão em passos tranquilos, entrei na Kombi, dessas de serviço que tem as janelas lacradas e sem bancos traseiros, fucei entre as roupas e achei um macacão azul surrado, um par de botas e um boné combinando, composto o personagem, colei um bigode falso e apanhei uma prancheta com um papel de ofício preso nela.
  Quando fiquei fácil para a visualização do porteiro, andei em direção do portão com os olhos fixos na prancheta, como quem não havia percebido a presença dele, eu tinha um olhar de quem tinha que executar uma tarefa muito chata, parei e ele se mostrou solícito:
  _Amigo, esse é o 780??
  _. É sim, posso ajudar??
  _O técnico dos elevadores esteve aqui por esse mês, suponho.
  _. Não, já tem mais de seis meses da última visita.
  Levei as mãos à cabeça, aparentando que se tratava de uma tragédia, ele respirou fundo:
  _. Algum problema, moço??
  _. Alguma reclamação acerca de alguns dos elevadores???
  _. Sim, o tempo todo.
  E, funciona assim, para condôminos, elevadores são motivos de insatisfação, insatisfações são jogadas sempre na portaria, porteiros odeiam reclamações, só o fluxo natural das coisas, naturalmente o porteiro não se opôs ao fato de um técnico executar uma vistoria fora de data, isso me deu a tranquilidade de, da janela vidrada do corredor do segundo andar, observar o terreno vizinho, diga-se de passagem, uma bela visão de um belo imóvel, no fundo do terreno se estendia uma grande piscina, onde uma camada verde de limo se apresentava no azulejo do fundo.
  Voltei ao automóvel, livrei-me do disfarce e procurei numa caixa de arquivos a minha salvação, uma pilha de panfletos diversos, um deles deveria me ajudar.
  Ao cabo de alguns segundo o achei, dizia o anuncio:
  LIMPADOR DE PISCINAS, telefone tal.
   Juntei uns cinco desses anúncios, voltei à frente do sobrado e joguei-os por cima do muro, o telefone correspondente no anuncio era o da Tereza, agora era esperar.
  Nossa agencia não fora montada com o dinheiro arrecadado na venda das armas do Souza, tudo o que conseguimos com isso mal pagou uns aluguéis e a manutenção do carro.
  O Hafic sentiu, nem me pergunte como, que seus dias nessa terra estavam contados e, tinha medo que, com a sua morte, a agencia fosse desmontada.
  O turco tinha dois filhos bem-educados e formados, esnobes mesmo, mal falava com eles e sabia que os mesmos não aprovavam as aventuras do pai, sempre metido no submundo, a ideia de aventura de investigações era-lhes repugnante, o tipo de pessoas que, ao entrar em suas casas acarpetadas, deixam os calçados para os criados limparem a sola.
  Para o velho, eu e a Tereza éramos os filhos adotados, nos chamava de filhos, quando da sua morte, recebemos duas notícias, uma dava conta da dissolução da firma, o advogado que cuidava da divisão da herança do turco nos chamou à parte e nos deu um envelope grande, escrito à caneta, no garrancho habitual do Hafic:
  Para os meus queridos filhos...PS, nunca assinem papeis em branco.
  Por ser esse, o bordão mais famoso do velho, rimos um pouco de saudades, com cuidado abrimos o envelope, papeis com nossas assinaturas e com carimbos de cartórios, dois terrenos na periferia e oito linhas telefônicas e ações dessas linhas, tudo quitado.
  Algumas dessas linhas telefônicas eram avaliadas no valor de um bom apartamento no centro de São Paulo, não dividimos nada, viramos sócios.
  Ultimamente o plano Collor jogou tudo no chão, nossas ações foram desvalorizadas, nosso dinheiro foi confiscado e, como isso aflige o país todo, os clientes sumiram.

terça-feira, 12 de setembro de 2017

Tereza



Já se haviam passado mais de trinta e seis horas, desde o encontro com a moça de branco, na sala branca, do piano branco.
  Eu pretendia encerrar o serviço em cinco dias, portanto, ainda estava em dia, antes, porém, tinha que resolver a minha vida, o senhorio não se deu ao trabalho de me abrir a porta da minha sala, mandou o zelador do prédio, um sujeito grosso, de olhos pequenos, nariz pontudo e dentes projetados, eu costumava assemelhar a cara do capacho com uma fuinha ou esses roedores, de fato, os gestos rápidos e nervosos dele, lembravam mesmo um roedor.
  Ele abriu a porta e entrou, os olhos postos em mim, como se eu fosse levar algo que não me pertencesse, como tinha que esperar a chegada da Tereza, fiquei pegando as coisas pequenas, juntando-as numa caixa de papelão, os olhos do zelador se moviam de acordo com os meus movimentos, sujeito seboso.
  A Tereza é minha sócia, esposa de um grande amigo de infância, na agencia, ela fazia todo o trabalho de uma secretária, mas, a firma foi construída por nós dois, em partes iguais.
  Eu e o Souza fomos órfãos e, nos conhecemos no mesmo berçário, seguimos juntos em dois orfanatos, servimos o quartel na Lapa, sempre juntos, foi no quartel que ele se empolgou com as armas e, numa matinê de black music, conhecemos a Tereza, ficamos ouriçados por ela, mas só o Souza teve coragem de chama-la para uma dança, viramos um trio e descobrimos que ela, coincidentemente, também vinha de orfanatos, virou minha amiga e namorada do meu melhor amigo.
  A imobiliária do Hafic era administrada pelo próprio, um turco de sorriso fácil e gestos largos, ele fazia de um tudo, comprava antiguidades, vendia tecidos, contrabandeavam mercadorias, agenciava viagens, tudo, menos vender imóveis, dentre as várias atividades dele, havia uma a que ele se dedicava de corpo e alma, investigações particulares, havia sido policial na Turquia e sabia tudo do ramo, eu era o arquivista e a Tereza era a secretária dele, por vezes, ele nos usava nas missões, a Tereza era a isca e eu me formei mestre na arte do grampo e do disfarce.
  Sem que nos déssemos conta, o Souza entrou para uma gangue e, num assalto à um carro forte, foi fuzilado.
  Quando voltamos do enterro do amigo, resolvemos entrar no porão da casa deles, encontramos um arsenal, armas de diferentes calibres e muita munição, cuidadosamente vendemos as raras, a maioria para colecionadores, o destino das mais simples foi o esgoto mesmo.
  A Tereza chegou com uma Veraneio alugada, juntamos os arquivos, as roupas de investigações e levamos ao automóvel, fechei a porta e entreguei as chaves ao capacho.
  _. Fala para o seu patrão enfiar no cú.
  A Tereza sentou-se no banco do passageiro e girou a manivela que abria o vidro da janela, pediu que o motorista esperasse um pouco:
  _. Sabe que tem um cantinho para você sempre.
  Acenei que sim com a cabeça e iniciei a caminhada, ela beijou a palma da mão e me jogou o beijo, o motorista ligou o motor, sabia que o olhar dela me acompanharia longe, segui a avenida São João, rumo ao Largo do Paissandu.

A dama e o juiz



Apressei em pagar a dívida com o senhorio, o aluguel fora atrasado em seis meses, num belo dia, cheguei cedo e dei de cara com o imóvel lacrado, haviam trocado o segredo da porta e, grampeado à meia altura, uma ordem de despejo, papel assinado pelo juiz Marquesini de Castro.
  Não que eu não pudesse, na calada da noite, abrir a porta, resgatar os meus pertences e sair sem deixar pistas, isso era a minha profissão, não o fiz, por uma questão de lógica:
  O juiz havia sido um cliente meu, um caso de adultério, pagou-me regiamente para seguir os passos da esposa, uma dama da sociedade paulistana que, ostentava joias em público, promovia festas de luxo e era conhecida nas altas rodas filantrópicas da cidade.
  O juiz havia me dito que, alguns horários da esposa não batiam com a agenda oficial, não que ele desconfiasse, de fato, da dama, estava me contratando por desencargo de consciência.
  Em campo, não demorei dois dias para desenrolar o novelo da vida secreta da madame, ela não mantinha um caso, mantinha vários casos que, não eram tão secretos assim.
  De feições agradáveis e corpo escultural, a beleza ainda lhe favorecia aos quarenta e cinco anos e, tendo ela, apreço ao comando, enquanto se fartava sexualmente, gritava palavras de ordem, embaixo ou em cima deles, a sanha da mulher não conhecia preconceito, muito embora, ela desse uma maior atenção aos sujeitos negros e fortes, não era uma simples discrepância na agenda, muitas vezes ela chegava em casa, dois dias depois.
  Entreguei o relatório ao juiz, com textos e explicações e, é claro, as fotos, essas dispensavam qualquer escrita, ele me pagou a outra metade e se fechou num canto.
  Portanto, usando a suposição, ferramenta essencial na minha profissão, ele havia perdoado a esposa e vinha com toda carga em minha direção, faria tudo para transformar a minha vida num inferno.

A herança

     Nunca tive dinheiro de sobra, isso é certo, mas, essa onda de azar está me tirando o sono de verdade, enquanto a ministra da fa...